Sexta-feira, saio da sala de aula às 18h30, bem cansado, porém com aquela sensação de dever cumprido, aquela emoção e alívio que me abraça no corredor até a sala dos professores, sendo acompanhado, claro, por um aluno e uma aluna, aqueles que carregam sempre nossos apetrechos e vão contando as novidades do dia. Embora esteja cansado e com passos acelerados para me despedir da escola e “curtir” o fim de semana, sempre temos um minuto para escutar o que eles têm a dizer; afinal, depois de várias aulas em que mediei, chorei, briguei, sorri, gritei, e até professei o conteúdo (embora alguns pensem que doutrinei), não custa nada encostar os ouvidos nas palavras curiosas das crianças, pois lembro sempre que em sociedades doentes, muitos de nós, professores e professoras, somos o único ponto de seus desabafos.
Esse pequeno trecho é muito comum no cotidiano de qualquer professor, e normalmente dura poucos minutos. Todavia, o que não é comum na vida dos trabalha(dores) da educação é o trecho que diz “curtir o fim de semana”. O descanso não começa na sexta-feira, aliás, ele NÃO se inicia em tempo algum. Isso, nos últimos anos, vem nos afligindo, pois, com a constante informatização de alguns processos na educação, o que era para ser luz, apoio e até mesmo ferramentas pedagógicas de engajamento para a aprendizagem, infelizmente passaram a ser métricas de controle burocrático.
O fim de um semestre está chegando e com ele a corrida frenética para alimentar o GRANDE IRMÃO (apelido carinhoso que alguns professores deram ao sistema na escola que trabalho). Sim! Temos que correr, visto que dados em sistemas de notas devem ser preenchidos, bem como a análise individual de cada aluno, o plano alinhado à BNCC, o relatório de acompanhamento, busca ativa… SOCORRO! Vozes entraram em minha cabeça neste exato momento.
É muito comum, neste período do ano, na sala dos professores, o computador ser objeto de disputa para DIGITAR AS NOTAS, aliás esse é o mantra do desespero pontual de cada fim de bimestre/trimestre, a ponto de roubar o fim de semana dos professores. Infelizmente, as atribuições de uma escola estão vinculadas a estruturas burocráticas de diretorias de ensino que outrora eram conhecidas como delegacias de ensino, talvez por abrigar “policiais” da educação que conquistavam suas estruturas através da vigilância aos professores e com as secretarias digitais. Isso escancarou!
Entretanto, vivemos em um ambiente bastante paradoxal, visto que houve uma grande difusão de ferramentas digitais para uso pedagógico e, com isso, os professores esperavam que elas viessem para APOIAR e ajudar na promoção do tempo e da criatividade docente, mas sua aplicação acaba se adequando acerca das necessidades de indivíduos, que detêm o “login” de administrador e, assim, as inúmeras possibilidades do mundo informacional acabam se resumindo apenas em um tentáculo: o sistema de notas. Uebaaaaa!!!
Certo dia, quando lia “1984”, de George Orwell, deparei-me com a seguinte passagem:
A escola é o grande Departamento de Registros, arquivos que não espelham o real aprendizado dos alunos, tampouco a dimensão da aula de cada professor, mas um contemplativo dos materiais que são colocados a nós e que devemos seguir, por mais que cada aula seja única e que nossos sentimentos se emocionem com os questionamentos das crianças, as diretrizes sempre serão:
AS NOTAS JÁ ESTÃO DIGITADAS?
OS PLANOS JÁ FORAM ENVIADOS?
A RECUPERAÇÃO JÁ ESTÁ PRONTA?
O RELATÓRIO JÁ ESTÁ FINALIZADO?
TODAS AS PROVAS JÁ ESTÃO CORRIGIDAS?
Todavia, um questionamento que DEVERIA ser basilar não é feito: E A AULA? “Ah, essa deixa para depois professor, temos que seguir o padrão da escola/diretoria!”
Esses padrões, que deveriam orientar as escolas, amortalham instrumentos de vigilância do trabalho docente, pois as escolhas desses “planejadores” não consideram a dinâmica do interior do colégio tampouco a presença dos professores que possuem capacidade de crítica aos “padrões” e sempre encontram soluções fantásticas, mas, lamentavelmente, dentre os lados matemáticos que se pensa a educação, apenas o vertical funciona.
Por muito tempo, ficava mal por não entregar as funções (provas, diários, planos, relatórios) no prazo. Isso fazia com que me sentisse um péssimo professor, pois via alguns colegas com anotações perfeitas, notas tabuladas em azul, vermelho, amarelo e todas as cores possíveis, enquanto eu abria minha mochila e lá estava um monte de papel solto com anotações das minhas aulas e bilhetes dos alunos. Quando chegava em casa, na sexta-feira, sempre dizia: “colocarei tudo em ORDEM este fim de semana” (lá se foi MAIS um fim de semana). Ao preparar o despertador no domingo, para a maratona da semana, deparava-me, sentado à beira da cama, com toda a minha “desordem”, do mesmo jeito que cheguei na sexta-feira.
Por outro lado, a minha desordem me permite pensar fora da caixa, pensar naquilo que foge do padrão, naquilo que reage ao sistema e, com isso, respira a educação e o sabor da sala de aula com meus alunos. Ora, se escola é gente, como Paulo Freire disse, logo faço, com meus alunos, escola, pois GENTE não é padrão. E se meu tempo fosse mais destinado para ser GENTE, com certeza as aulas seriam melhores.
Voltando a nossa conversa das ferramentas digitais que são utilizadas ao modo de quem detém o “login” de administrador (quase a chave do cofre), lembro de uma passagem de Pierry Levy dizendo que as tecnologias, por estarem na rede, tornam-se organismos vivos. O que ele diz com isso? Se o sistema é vivo, principalmente com ferramentas que permeiam o trabalho colaborativo, por que temos que seguir os padrões de números frios e estanques?
Então, essa vai para você, professor desorganizado:
Professor você é INCRÍVEL! E é INCRÍVEL exatamente devido a sua “desordem”! Se as tecnologias são vivas, tenha certeza de que o mantra de FECHAR O SISTEMA para IMPRIMIR boletins já é uma senhora no fim de sua vida. Portanto, não se culpe se suas notas estiverem bagunçadas, pois não são elas que definem a qualidade de sua aula.
Claro, não posso me despedir de vocês assim de supetão. Se continuamos sendo “padrão” e alimentando o sistema, continuaremos a viver a espiral de culpabilidade e eu não quero ser fiador disso.
Abraços e fiquem com Manuel Bandeira:
Diretor, avise os responsáveis que atrasarei a digitação das notas; estava planejando uma aula! Abraços!
"A tecnologia mais eficiente criada pelo ser humano não são as máquinas tampouco os meios super mega ultra powers digitais, mas sim o diálogo, uma ferramenta de uso simples, mas de grande potencial em conectar, ajudar, colaborar e principalmente, AMPLIFICAR! -"