Neste relato, adentramos nas complexas batalhas que professores enfrentam diariamente nos corredores da educação. Se a chama do ensino ainda arde, é porque nós – educadores e educadoras, inspetores, zeladores, secretários e secretárias – seguramos incansavelmente as rédeas desse imenso navio chamado escola.
Segunda-feira…
Às 5h40, o alarme rompe o silêncio do amanhecer, anunciando que o fim de semana fugiu como um sonho evanescente. Com um suspiro, relembro que o domingo não me trouxe o descanso desejado, pois passara os dias separando materiais e atualizando meu “diário”. Durante as aulas eu sempre me emaranho na preocupação em lecionar, deixando pouco espaço para tarefas burocráticas, tal como o preenchimento de diário. Entretanto, como ecoa o poder dos superiores: “Professor, o diário também é responsabilidade sua!” Em minha posição humilde, respondo com resignação: “Tudo bem!”
Às 5h50, o alarme insiste em tocar, lembrando-me que os dez minutos de indulgência se esvaíram e é hora de levantar. Às 7 horas em ponto, os estudantes estarão à espera, alguns ansiosos, outros secretamente desejando minha ausência para uma partida de UNO.
Dentro do carro às 6h10, ligo o rádio, sedento por notícias frescas que possam me surpreender (embora ultimamente as notícias sejam as mesmas) pois a jornada que me aguarda sempre guarda espaço para questionamentos inesperados de alunos pelos corredores me indagando sobre os últimos acontecimentos.
Às 6h50, chego na escola e direciono-me à sala dos professores. Naquele instante, o ambiente está permeado por um silêncio relativo, um respiro antes da semana se desenrolar completamente. Uns abrem armários, outros encaram o vazio, enquanto eu me aconchego no sofá por mais alguns minutos preciosos antes do toque do sinal.
Com o badalar do sinal, olhares entre professores se cruzam, à espera do primeiro a se levantar e “desbravar” o caminho rumo às salas de aula. São dois minutos para assimilar o sinal e nos misturamos ao fluxo dos alunos nos corredores.
No extremo do corredor aguarda a sala da minha primeira aula. Na porta da sala, reúnem-se de 3 a 4 alunos amontoados no cruzar da porta, eles já se encontram a 10.000 por hora (eles não param). À medida que me aproximo, faço gestos indicativos convidando-os a entrar na sala. Alguns alunos aproveitam para me abraçar, uma tática já conhecida para retardar o início da aula, algo que me faz lembrar de meu passado estudantil.
Dentro da sala, ocupo minha mesa, puxo o notebook da mochila e tento em vão conectar-me à rede escolar, que, dentre os 200 dias letivos, funciona em apenas 10, exatamente nos dias que não estou presente. Mas insisto na conexão, ainda que em vão. A saída é recorrer ao roteador do celular para a chamada online, uma dança de dispositivos para justificar os registros.
Entre corredores, chamadas e esforços para acalmar o tumulto que já se anuncia,percebo que já são 7h23, e a aula se estenderá apenas até 7h45. Ergo-me, alcanço o centro da sala e anuncio: “- Queridos alunos, na aula passada, pedi que pesquisassem…” Risos ecoam, alguns admitindo que a memória não chega sequer ao que comeram ontem. Respiro fundo e questiono: “Alguém fez?” Uma mão envergonhada se ergue e diz: “- Professor, eu fiz!” Agradeço pelo mínimo e utilizo a única pesquisa que tenho para embasar nossos debates. Tencionava uma roda de conversa, mesmo com as pesquisas ausentes a formação da roda se desenha, apesar das distrações que tentam nos separar. Ufa! São 7h37. Lanço duas perguntas relacionadas à pesquisa, e duas respostas instantâneas emergem, um coro dizendo: “Legal! É isso, professor!”
O término da “aula” dá passagem à próxima sala, alunos um pouco mais velhos, que, mesmo não anotando, mostram entusiasmo pelas discussões. Entro, distribuo as imagens de Debret, retratando o período escravocrata do Brasil. A intenção é aguçar a observação sobre essa triste página da história. Após a entrega, uma voz se destaca: “P*** que p***, professor, que imagem é essa?” Uma válvula de escape em relação à aula anterior, o interesse já era evidente. Lanço a seguinte provocação: “- Uma imagem assim poderia ser postada no Instagram?” Olhares se cruzam mas..
Já são quase 8h00 e a reflexão flutua entre os alunos, confesso que vislumbro um fio de esperança, um farol de aprendizado, mesmo que alguns estejam aprisionados no mundo do TikTok.
Essa discussão, ao menos, deixa uma marca neles. A chamada passa despercebida, e a batida da porta por um outro professor sinaliza o fim da aula.
Ao deixar a sala, uma voz ressoa: “- Professor, professor, vai dar visto?” Indago: “Visto em quê?” O aluno argumenta: “Ué, professor, no caderno!” Franzo a testa e afirmo: “A discussão vale mais do que 10.000 vistos!” Ele devolve: “Ah, então por que eu anotei?”
Minha breve alegria se desvanece, como dizem: “Alegria de pobre dura pouco!”
Como me atrasei na segunda aula, já são 8h37, e percebo que se fizesse a chamada, a terceira aula teria apenas 15 minutos. Com passos rápidos pelo corredor, afinal, a próxima sala estava logo ao lado, decido deixar a chamada para depois. Quando abro a porta para a terceira aula do dia, deparo-me com duas alunas chorando intensamente, e dois estudantes se envolvendo em um confronto, usando a palavra “envolvendo” para evitar outra que, dadas as circunstâncias, você já conhece. Em questão de segundos, tenho que tomar uma decisão e avaliar qual ação teria o menor impacto. Atravesso a sala com pressa, separo os estudantes e os levo para o corredor para entender o que estava acontecendo. Mais dez minutos se passam (mais uma vez!) e já são 8h53.
Ao abrir a porta novamente, todos os alunos estão próximos, ansiosos para saber o que ocorreu. Dado o dinamismo da sala, peço a atenção de todos para discutir a situação. Ressalto que a escola é um dos poucos, se não o único lugar que influencia a vida deles e, por consequência podem melhorar a sociedade. São 9h15, faltam apenas cinco minutos para o intervalo, e, cercado pelas incertezas escolares, não tive tempo para a chamada, o conteúdo ou a aula. Não tive tempo para nada!
Aproveito o tempo restante para chegar até as alunas que choravam e perguntar: “E aí, meninas, está tudo bem?” O sinal toca, e como num vagão descarrilado, alguns alunos quase me atropelam em busca do recreio!
Agora se inicia um período de 20 minutos de pausa, em um dia que já viu de tudo. Durante o intervalo, a sala dos professores não está mais em silêncio. À medida que os docentes chegam, trazem consigo as lamentações de inúmeros problemas enfrentados durante as aulas. Decido, então, compartilhar também o “sucesso” de minhas três primeiras aulas. O sinal do retorno toca, e opto por me servir do terceiro copo de café da sala, pois ainda faltam quatro aulas para concluir a manhã.
Enquanto atravesso o corredor em direção à quarta aula do dia, noto uma cena curiosa: uma disputa para adentrar à sala de aula pós-intervalo,visto que alguns se susbtituiam em outras salas com diferentes colegas.
Normalmente, permito três minutos de entrada livre, mas após isso, a entrada é bloqueada. Como todos me conhecem, a maioria consegue garantir seu lugar, algo como um metrô lotado em horário de pico.
A quarta aula do dia seria uma “dobradinha”, com dois tempos consecutivos. Planejo projetar um filme, enriquecendo as discussões em andamento. Anuncio a intenção do vídeo e ouço ao fundo: “- Oba, vou dormir por 1h30! Sucesso!” Evito reagir, pois percebo a tentativa de minar a aula, mas permaneço firme.
Após todo esse percurso começo a reproduzir o documentário, gastando quase 20 minutos para exibir os primeiros cinco, devido a interrupções constantes. O filme rivaliza com barulhos, canções, conflitos no corredor e outros elementos que transbordam para dentro da sala. Metade assiste, enquanto a outra metade disputa meu território. Por fim, silencio o ambiente (mais uma vez) e retomo a reprodução. Enquanto isso abro o computador para ajustes no diário, sempre pausando a cada três minutos para conter distúrbios vindos de alguns estudantes.
Com altos e baixos, a aula prossegue. No entanto, o documentário está longe do fim, graças às interrupções. A essa altura, já são 11h10, e a última aula da manhã se avizinha. Mas a sensação é de que se passaram décadas desde o início do dia, e a fadiga é palpável. Ainda assim, continuo.
Na última sala, um quadro surpreendente se revela: silêncio, concentração e serenidade.! Atônito, dirijo-me à inspetora e pergunto: “O que está acontecendo aqui?” Ela me responde, revelando uma realidade distinta: “Estão realizando a prova do governo.”
Adentro a sala de aula e compartilho com eles: “Prossigam com a prova. Assim que concluírem, podem entregar e se retirar.”
Conforme um a um sai da sala, uma reflexão de Darcy Ribeiro ecoa em minha mente: “A crise da educação no Brasil não é uma crise: é projeto!”.
Tento recuperar o fôlego, pois o período da manhã ficou para trás, mas a tarde já se avizinha. Às 13h50, caminharei em direção à próxima escola e…
"A tecnologia mais eficiente criada pelo ser humano não são as máquinas tampouco os meios super mega ultra powers digitais, mas sim o diálogo, uma ferramenta de uso simples, mas de grande potencial em conectar, ajudar, colaborar e principalmente, AMPLIFICAR! -"
Triste realidade da educação Paulista…